Estranho ver o
rosto de Ana hoje, a pobrezinha parece ter tido dor de dente à noite toda. Com
olhos mareados e inchados, com o corpo mole e dolorido, ela se levanta e vai
direto ao banheiro, onde o chuveiro serve de abrigo e o silêncio de reflexão.
Já são 05h15min
e o ônibus já vai passar pela sua porta. Ana se apressa para poder pegar o
melhor lugar e assistir ao sol, aos poucos, deixar o mar para iluminar o seu
dia. Às 06h20min Ana desce em seu ponto –não tão seu, ficava há 12 quarteirões
de seu trabalho, mas ela não se importa, o caminho é florido e as flores lhe
fazem sorrir- para ir de encontro ao mundo. Pelo caminho as cores, as flores,
os vitrais, os sorrisos... O que mais lhe fazia bem era ver a imensidão que uma
pétala esconde por trás de sua majestosa forma.
Ana sorria de
quase tudo. Das cores inusitadas das margaridas, das abelhas voando pelo
jardim, pelos freios desesperados dos carros, e até mesmo de si. Talvez ela não
seja assim tão boba, às vezes ser feliz consigo é a melhor das receitas para
respirar o a imensidão do amor. A cada passo espaçado, uma nova descoberta
nessa paisagem tão igual e rotineira.
Ana chega
então ao seu trabalho e antes de entrar faz a sua prece de todas as manhãs à
sua incontestável fé:
- Não me
deixes cair, não me deixes desacreditar, pois o que flor pra ser, florescerá.
E assim ela
começa o seu dia. Com o radinho a pilha ligado, Ana se imaginava nas músicas. Cantava,
e dançava e assim continuava sendo feliz. Quando chegava meio dia, Ana saia
correndo pelo corredor para ver o Seu Paulo passar. Paulo era apenas mais um
homem comum, que trabalhava de sol a sol em busca do sustento do filho que a
esposa deixou para ele cuidar antes de morrer. Paulo, um homem que traz a
amargura de viver pelo amor e vê-lo morrer em seus braços, era justamente isso
que Ana gostava e esperava em um homem. Paulo sabia a forma exata de como
tratar Ana, e Ana amava o jeito de que ele a tratava, deixava toda sua bochecha
corada de vergonha, encabulada de paixão e com mais vontade do que já tinha de
ir tomar um sorvete de limão- o seu favorito- na sorveteria da esquina.
Mas Ana ainda seguia os conselhos que sua
finada mãe- que Deus a tenha- lhe deu quando pequena:
-
Homem é igual capim em jardim de rico, tem que podar desde o início antes que
cresça e se espalhe por todo o Jardim. Filha minha nasceu para ser rainha e não
rapariga na mão de lampião.
Com isso, Ana se sentia na obrigação de ter
não um homem, mas um rei ao seu lado, e para ela, Seu Paulo era o rei que sua
mãe tanto lhe falava.
Um dia, no mesmo horário, Ana tomou coragem e
foi falar com Paulo. Tímida, sem saber o que dizer a jovem moça com seus quase
30 anos, suspirava mais do que falava ao olhar o rosto de Paulo tão perto do
seu. Ela só pensava nos jardins coloridos de sua cidade, e como eles ficariam
lindos deitados no meio deles, simplesmente olhando para o céu e esperando a
chuva de verão molhar suas roupas. Mas quando Ana ia abrir sua boca pra chamar
Seu Paulo para um café, Dona Muriel- sua patroa. Não muito boa, mas a única que
suportava o jeito delicado e lento de Ana ser-, gritou da janela de casa:
- Ana minha filha, o horário do almoço
terminou há 10 minutos. Vai entrar ou prefere que eu te demita para ficar mais
a vontade com esse rapaz?
Ana ficou como quem acaba de levar um banho
de gelo. Seu semblante mudou e seu tom de voz foi diminuindo junto ao seu
olhar, que aos poucos se encontrou fixado nos pés de Paulo. Sem saber o que
falar, ela apenas se desculpou e deu as costas para o então homem de sua vida.
Paulo não entendeu o motivo da desculpa, e lhe lançou uma frase que Ana guarda
até hoje em seu peito:
- Não se deve desculpas a quem se ama. A
desculpa só pode ser oferecida quando algo precioso se quebra, e acho que você
está colando aquilo que foi quebrado em mim. Boa tarde senhorita Ana, seus
olhos são lindos como dois pássaros que voam pelos céus. Até logo.
Ao ouvir isso do seu rei, Ana ficou estática,
paralisada, boba e sem acreditar que escutou isso daqueles lábios. Ela então
entrou correndo em seu trabalho, trancou a porta do banheiro, sentou no chão e
chorou. Mas o choro foi de alívio só de saber que suas preces finalmente foram
ouvidas. Depois de ouvir passos no corredor em direção ao banheiro, Ana se
levanta e lava o rosto, ainda sem desmanchar aquele sorriso bobo do rosto.
No final do expediente, Ana começa a andar de
volta para o caminho de casa, talvez esse seja um dos piores momentos do seu
dia. Voltar para seu lar sem sol, sem cores das flores e sem as abelhas por
perto, tornava sua noite mais fria e sombria. Até que de repente, ela viu um
homem moreno, alto, vendendo balões em forma de coração na pracinha da igreja
central da cidade. De longe ela tinha impressão de que já tinha ouvido aquela
voz de algum lugar, de perto, a surpresa.
Pela manhã Seu Paulo vendia pamonhas de rua
em rua no centro da cidade, a noite, ele esquentava seu coração frio ajudando
outros corações a se esquentarem com pequenos gestos de carinho. Para ele isso
era mais do que uma caridade, era uma obrigação.
Ana então foi arregalando os olhos e o
sorriso, até que chegou perto de Seu Paulo e mais uma vez, com suas bochechas
rosadas ela lhe falou:
-Não imaginei que um rapaz tão grande ainda
acreditasse no amor.
-Não só acredito como ainda espero revivê-lo.
Você não acredita em amor dona Ana?
- Acho que sim... Na realidade nunca vivi o
amor, só escuto as pessoas falarem dele. Elas gostam, mas depois odeiam esse
tal amor. Porque isso Seu Paulo?
- Ana, o amor só é bom quando o coração pulsa
quente e você sente esse calor quando está perto da pessoa. De resto é só
apego, só vontade de ter perto pra não perder as mãos nem os freios.
Ana então olha para o céu como quem está
pensando no que foi dito:
- Nossa! Como o céu está lindo. Às vezes
tenho a impressão que as estrelas querem nos dizer algo. Sou louca né?
- Jamais dona Ana. Em casa eu fico na janela
olhando para o céu esperando que elas me mandem respostas, me passem algum
sinal. Às vezes dá certo, outras vezes durmo com esperança do Sol me guiar.
Ana então sorri e diz:
- Paulo, eu tenho que ir agora. Tenho que
limpar a casa e ainda ajeitar as coisas pro meu dia de amanhã. Mas, se não for
muito incomodo, gostaria de tomar um sorvete de limão na sorveteria lá da
esquina do trabalho, comigo?
O silêncio pairou no diálogo, e Ana mais uma
vez encabulada começou a preparar um pedido de desculpas em sua cabeça, até que
Seu Paulo rompe com um sorriso tímido o
silêncio e diz:
- Sabe Ana, durante todo esse tempo esperei
para poder ver você de perto. Esperei um momento certo para poder te dizer um
simples “Oi”. E hoje, você é quem está me chamando para sair, onde eu que
deveria ter tomado a atitude. Será mesmo que sou o homem que você imagina que
sou?
Ana então gargalha ligeiramente alto e ao
terminar, olha para o rosto de Paulo já sem graça por conta da risada, e lhe
direciona uma cantoria:
- De nada vale a paixão sem os quereres de alguém
que lhe conduz ao inusitado, ao profano. Talvez o que precisemos mesmo é de
atenção, pois aos poucos a coragem nos toma. Amanhã mesmo, a coragem nos levará
a tomar um sorvete de limão, e depois disso, a coragem tomará nosso rumo. Ser
feliz é o que nos resta!
Rindo estava e rindo se foi. Ana finalmente
conseguiu andar pelo muro sem cair e chegou em casa antes mesmo do horário de
dormir. Eram novos tempos, tempos de amar e de se eternizar. Restavam dúvidas,
mas isso, só no próximo despertar.
Autor: Cristian Schöder